Quarentenou!
Muita gente ficou em pânico com a ideia de permanecer um tempo (ainda indeterminado) isolado dentro de casa e sem poder “sair para brincar com os amiguinhos”. Eu recebi a notícia com tranquilidade, não apenas porque meu trabalho pode ser feito à distância, em modelo de home office, mas também porque eu já gostava de ficar isolado muito antes de ser modinha e, enfiar-se dentro de casa munido de comida, games, livros, quadrinhos, séries e filmes, é o que eu costumo chamar de “um bom domingo”.
Além disso, já nos primeiros dias descobri o delivery local. E se a gente achava que comprar da China (o que se tornou momentaneamente inviável) ou da Amazon era maravilhoso, com o delivery do bairro, o céu é o limite. Por aqui já fiz compras no mercado, no hortifruti, no açougue e até na sorveteria – e quase precisei comprar uma geladeira nova para estocar tanto picolé. Tudo devidamente entregue no portão de casa e, em algumas vezes, nem precisei trocar o pijama para receber. Essa vida pode ser adaptável e quase bela para quem não tem problema com boas doses de Solidão, que não só é minha amiga como também mereceu dedicatória exclusiva em meu primeiro livro – o Crônicas Noturnas, de 2009.
As coisas seguiram fáceis até o sétimo dia de quarentena, mais ou menos. Contatos virtuais com amigos e família, saídas estratégicas para uma corrida leve em algum lugar deserto e sem chance de contato com outro ser humano, trabalho seguindo, tarefas domésticas mantendo a (chatice) rotina para dar sensação de normalidade, tudo tranquilo.
A partir do décimo dia, as coisas começaram a ficar meio esquisitas. Naquela noite, altas horas, comecei a sentir que os Titãs tinham razão em “Nem 5 Minutos Guardados” e realmente as plantas me vigiavam do jardim. O vento que batia nas folhas do coqueiro que fica na frente da minha varanda fazia com que ele se curvasse um pouco, mandasse um “oi” travesso e sumisse novamente. Achei que fosse só sono e fui dormir. Sonhei com jogos de zumbis.
Com duas semanas completas dentro do apartamento escondido do coronavírus, raspei a barba e deixei apenas o bigode, na esperança de que isso me fizesse sentir mais confortável ao ver um rosto diferente no espelho. Me diverti interpretando sozinho cenas de Éramos Seis ao som de Roberto Carlos. A novela acabou, o bigode perdeu a graça, e também teve que partir.
No décimo quinto dia, um domingo, passei todo o tempo alternando programas de TV com sonecas preguiçosas. Decidi manter as cortinas fechadas, sabia que o sol estava lá fora, me afrontando e zombando da minha condição de confinado. Concluí que o Big Brother, que nunca tive paciência para assistir, talvez tivesse um fundo filosófico por trás de tudo. Passei a noite pesquisando a localização da casa e fazendo planos de invadi-la e fingir ser um participante. Descartei a ideia de manhã, ao lembrar que da última vez que tentei pular o muro de casa, terminei com um joelho sangrando e ele tem pouco mais de meio metro de altura.
Hoje, já não sei mais quantos dias fazem desde que a quarentena começou. Tive tempo de pesquisar no dicionário e descobrir que, em casos médicos e de infectologia, o termo não se refere necessariamente a quarenta dias, mas a períodos variáveis que, se por um lado podem ser menores do que quarenta, também podem ser mais. Pensei em fazer um amigo imaginário com uma bola e chamá-lo de Wilson, mas lembrei que Tom Hanks teve coronavírus e não quis facilitar. O amigo dele pode estar infectado também.
Agora, com todo mundo voltando a participar de churrascos, encontros aleatórios, visitas ao mercado, brigar por uma mesa livre na praça de alimentação dos shoppings e encarar horas no trânsito lento (embora ainda tenha centenas de mortes diárias causadas pela doença e eu continue considerando que voltar ao normal é parar de morrer gente), eu sigo roendo as unhas, ansioso, e já pensando em desculpas novas para não sair de casa.